Uma das melhores recompensas que ser um Retroaventureiro me proporciona é a possibilidade de reembarcar em aventuras mal concluídas de meu passado a qualquer momento ou horinha de folga que apareça entre um trabalho e outro. Nestes momentos, é só por a mochila nas costas, pegar meia dúzia de poções de HP, e partir novamente ao encontro daquele chefe de fase parrudo que está engasgado desde aquela memorável surra acontecida a tanto tempo atrás, e que culminou em um sonoro e doído Game Over para coroar o fim da diária do cartucho alugado. Pois é, tem coisas que só as locadoras faziam pra você… Para todas as outras, use um bom emulador!
Um dia, existiu a Game Arts, empresa nascida em 1985 que se tornou famosa por duas séries de RPGs consagrados por tudo quanto é tipo de jogador, Grandia e Lunar. Bem, Grandia é um dos melhores jogos de RPG que eu tive o prazer de desfrutar em toda minha vida, e a série Lunar possui histórias tão cativantes mesclados a um sistema de jogo tão clássico (no bom sentido, diferentemente do maçante Dragon Quest – todos) que é difícil não se apaixonar por cada um dos títulos que levam este nome estampado em suas caixinhas. Só que antes que eu pudesse tomar conhecimento destes jogos maravilhosos, e antes que a Game Arts conseguisse com eles o status de softhouse respeitada, eu acabei alugando despretensiosamente e junto de alguns outros cartuchos que me garantiram um bônus de 2 dias a mais em posse dos mesmos, um tal de Alisia Dragoon.
Foi mais uma daquelas gratas surpresas que nos faziam esquecer os outros jogos alugados em prol daquela jogatina tão boa quanto inesperada. Sei que havia terminado o primeiro jogo alugado e não me recordo qual foi, mas sei que ao experimentar Alisia Dragoon, mal encostei nos outros cartuchos até que o prazo da locação vencesse.
Sim, era para tanto: o game era lindo, repleto de cenários fabulosos que se encaixavam e se completavam enquanto a moçoila ruiva de rabo de cavalo domadora de dragões avançava com seus bichinhos meigos no encalço do mago que havia profanado o templo sagrado de sua vila e afanado um ovo gigante de sei lá o quê, não sem antes mostrar à ruiva que com os seus poderes atuais, ela não apresentava o menor perigo.
Assim ficava claro que nosso objetivo não era só ajudar Alisia a atravessar o continente para chegar até a fortaleza dos caras maus, mas principalmente, evoluir o poder da ruiva e de seus dragões para que ela pudesse dar as caras lá e não apanhar miseravelmente como da primeira vez que o tal mago parrudo foi confrontado. E foi justamente isso que aconteceu comigo: cheguei lá, e apanhei feio.
Foi uma daquelas ocasiões em que a experiência conta mais fora do que dentro da aventura: em minha adolescência, eu não era famoso por vasculhar os jogos em sua totalidade não… Meu negócio era terminar o mais rápido possível jogo após jogo sem ligar para detalhes como explorar além do necessário, e isso foi algo vital para que eu não conseguisse terminar Alisia Dragoon naquela época. Foi sofrido, lembro de quando finalmente desisti: a luta contra aquele mago que se multiplicava e atacava com projéteis que deixavam meus dragões tão inúteis quanto um cone de trânsito, e a sova foi tamanha que eu não quis mais alugar o jogo por um bom tempo. E quando finalmente fiquei com saudade, ou com espírito renovado, ou outra coisa oculta que me proporcionou a vontade de novamente encarar a difícil aventura da feiticeira ruiva, notei que o game simplesmente não existia na locadora… Pois é, um pequeno detalhe que eu não havia levado em consideração: quando joguei pela primeira vez, aluguei o cartucho em uma game locadora que já havia fechado a bastante tempo justamente por não aguentar a concorrência desta atual, a saudosa Company Games.
Foi o fim da jornada por aquele mundo vasto e cheio de perigos, mas não o fim definitivo.
Alisia Dragoon possui 8 estágios relativamente grandes, cheios de passagens secretas e itens escondidos em locais que só exploradores natos metem o nariz, e sem estes itens, a tarefa de se terminar o game se torna dificílima. Mas acontece que hoje eu sou um explorador nato, então por que diabos não tentar novamente chutar o traseiro daquele bando de feiticeiros mal intencionados?
Recomecei então depois de tantos anos a jogatina daquele belo game, e agora com mais paciência e faro para vasculhar e encontrar respectivamente, pude em fim destrinchar a grande aventura da feiticeira ruiva e seus dragões domesticados, aventura esta que se mostrou bem mais rica e empolgante do que eu achava que poderia ser… Sabem como é né, as vezes o melhor a fazer é deixar intactas as lembrança que temos sob o risco iminente de estarmos prestes a subscrevê-las com algo não tão bom quanto antes.
Bem, não foi o caso, e logo ao começar a jogar, já me dei conta de algo que eu não me recordava: da cut cene inicial, que mostra uma breve descrição dos acontecimentos que antecedem a aventura.
Traduzindo, é mais ou menos isso: “Mais uma vez, a Estrela de Prata caiu do céu, desencadeando o mal e a destruição pela segunda vez. A única pessoa capaz de salvar o mundo, deve seguir à procura deste objeto.” Bem vago, mas fazendo aquele pente fino básico na Internet, pude descobrir a história que consta no manual do jogo, coisa que eu não saberia nem que eu tivesse o game original na época, pois não entendia bulufas de inglês, e mesmo que eu soubesse, a história que constava nos manuais ocidentais era uma balela sem sentido sobre gladiadores e causas humanitárias. A japonesa é a que vale: “Alisia é uma poderosa feiticeira domadora de dragões, a única filha de um grande feiticeiro que, a tempos atrás, lutou e venceu um ser demoníaco chamado Baldour, aprisionando-o em um casulo de modo que ele não causasse mais problemas à humanidade. Só que este ato acabou por deixar o velho mago completamente esgotado, o que o transformou em um alvo fácil e indefeso em meio aos seguidores do monstrengo, que liderados por Ornah, um poderoso aliado de Baldour, acabaram por capturar o feiticeiro, e o torturaram até a morte. O casulo é protegido e vigiado desde então pelo povo de Alisia, que agora adulta, presencia uma nova invasão dos inimigos. Liderados por Ornah, eles acreditam que Baldour está prestes a despertar, e assim, invadem o templo da vila no intuito de roubar o casulo e levá-lo até onde o demônio pode renascer calmamente com seu poder total, e é isso que Alisia deve impedir que aconteça.”
Na verdade nem aquilo que está descrito na cut cene inicial tem algo haver com a história real do jogo… Uma pena que as traduções dos jogos de antigamente fossem feitas com esse descaso na adaptação, mas não que isso fosse fazer alguma diferença para nós pobres crianças e adolescentes brasileiros que não sabíamos falar nosso próprio idioma corretamente, quem dirá o inglês que vinha estampado nas cut cenes dos jogos. Assim o que fazíamos era imaginar a situação em nossas cabeças e viajar na jogatina tentando entender o que se passava por meio do que nos era apresentado e convenhamos, isso tinha todo um charme naquela época!
Alisia Dragoon começa então com a heroína atravessando uma floresta infestada de inimigos que vem por todos os lados, e apesar da primeira impressão que chega a assustar de tanta porrada que se leva logo de cara, o jogo é muito mais gratificante do que difícil. Assim que se domina as rajadas energéticas da feiticeira, jogar e desbravar os cenários a procura de itens e power ups se torna algo muito prazeroso. Ainda bem, pois o mínimo de exploração não é suficiente para se dar bem no jogo: é necessário uma boa dose para que Alisia e seus dragões cheguem ao seu nível máximo de poder antes do embate final, que acontece na oitava fase do jogo. E os dragões são o toque especial do jogo: a moçoila possui quatro exemplares, cada qual com seu ataque passível de ser aplicado em situações distintas, e que podem ser evoluídos de modo aumentar a energia e o poder ofensivo de cada um, algo extremamente importante para derrotar os chefes de fase nada amigáveis que aguardam Alisia ao fim de cada etapa. Deixar um dragão morrer é algo que atrapalha muito, pois apesar de ser possível usar um item para reviver o bicho morto, este é muito raro e ressuscita o defunto em nível mínimo!
A exploração dos cenários à procura destes itens acaba revelando um design de fases realmente muito bom, e que esconde um monte de passagens secretas cheias de iguarias coletáveis. E quando eu digo um monte, eu quero dizer exatamente isso mesmo: eu nunca vi um game com tanta coisa escondida! É como se aquele velho ditado “quem procura acha” fosse o mandamento principal do jogo, e em todo lugar podemos achar alguma coisinha muquiada que vai de itens que aparecem flutuando a paredes falsas que explodem com as rajadas da ruiva, tudo isso em cenários longos, bonitos ainda que antiquados se compararmos aos jogos mais novos do console, coloridos e com várias camadas de fundo dando aquela boa e velha sensação de profundidade, de vastidão que está presente em quase tudo quanto é jogo de Mega Drive.
Como não poderia deixar de ser, um chefão espera a ruiva ao final de cada etapa: em algumas, um ou outro mago inimigo cheio de truques perigosos, noutras, aberrações mutantes que mais parecem terem saído de algum buraco que surgiu no chão e desce até o inferno. Até a sexta fase posso dizer que eles não dão lá muito trabalho e assustam mais pela aparência mesmo, mas isso não irá impedir que os jogadores percam alguns preciosos continues enquanto avançam pelas etapas do jogo. Vale lembrar que não existe marcador de vida, e a cada morte, resta ao jogador gastar um Continue para prosseguir na aventura. São apenas 3 de início, mas é possível achar mais explorando as fases.
Mas se eu disse que até a fase 6 o negócio é mamão com açúcar, o negócio começa a ficar amargo então a partir da fase 7, que é onde a coisa realmente esquenta e o coro come. A etapa é anunciada por uma bela cena em que Alisia contempla ao longe a fortaleza voadora inimiga, foi ali que eu desisti na pré adolescência, e foi ali também que agora, tanto tempo depois, eu percebi que me havia faltado experiência para descobrir e decorar o padrão de ataques do maldito bruxo inimigo criador de clones. Gastei alguns continues no miserável, continues que culminaram sim em um belo e doído Game Over, mas isso só na etapa seguinte, pois agora, mais experiente e com os poderes da ruiva em nível máximo, logo eu conseguia dar cabo do bruxo que havia me detonado no passado. Finalmente eu adentrava na última e para mim, inédita etapa do game, onde se daria o confronto final contra Ornah e Baldour, sem dúvida a parte mais difícil da aventura.
Seria justo dizer então que pesando todas as etapas, Alisia Dragoon possui uma dificuldade um pouquinho acima da média e isso se deve justamente a essa última fase. Mas, como eu disse anteriormente, o game é mais gratificante do que difícil e todo o trabalho e tempo dedicado a ele culminará em um belo final para ser assistido ao término da aventura.
Caros amigos retroaventureiros, se tem algo de que eu não gosto de falar quando analiso um jogo, é sobre a sua trilha sonora, e isso simplesmente por que quase sempre não ha o que falar… Na maioria das vezes, a trilha passa tão batida que nem percebemos, e então temos que ficar repetindo coisas do tipo “cumpre bem o seu papel” ou “mescla direitinho com os cenários” e outras baboseiras genéricas. O negócio é que acabei de finalizar e exceto a melodia da abertura, já não lembro mais de nenhuma outra música do game, nada dele eu vou sair assoviando por ai, mas isso não quer dizer que obrigatoriamente a trilha sonora seja ruim. Na verdade, penso o contrário: quando saímos assoviando alguma musica de jogo, é por que ela era realmente boa pra caramba, e isso é que merece ser citado. Se isso não aconteceu, melhor então esquecer essa parte, por que na pior das hipóteses, ela serviu de plano de fundo e não irritou os ouvidos!
Fim de missão, e o meu veredicto é o de que foi muito bom levar Alisia até a plena realização de sua vingança. Um game gratificante, de jogabilidade rápida e precisa, que possui um toque de estratégia na correta utilização dos poderes dos dragões, e que pode ser explorado como poucos da época em um nível que eu nunca havia visto antes, tanto que a muito tempo eu não me sentia tão empolgado por achar passagens secretas e itens escondidos. Apesar deste ter sido um belo cartão de visitas da Game Arts, eu lamento que Alisia Dragoon não tenha tido uma continuação. A ruiva poderia hoje ser uma das grandes heroínas do mundo dos games, ovacionada e venerada dentre musas como Samus e Blaze, mas mesmo isso não tendo acontecido, Alisia já fez o suficiente para figurar em minha memória como uma das grandes mulheres com o qual eu tive o prazer de me retroaventurar pelos mundos fantásticos dos 16 bits.
Fim
O slogan do antigo RetroPlayers ainda vale pra mim: “também to morto mas tô aí!”
E muito bem acompanhado =)