Sabe quando você ouve dizer que certo jogo é tão desgraçado que seria preferível correr uma maratona descalço na brasa a tentar terminá-lo? Sabe então quando este jogo existe sob várias facetas, diferentes em detalhes, iguais em essência, e uma mais desafiadora que a outra? E você reconheceria esse jogo se eu lhe dissesse que, apesar de todos os avisos e advertências quanto aos perigos iminentes que podem nos destroçar inúmeras vezes por tentativa, ainda assim, nós preferimos perseverar no sofrimento do que largar aquilo tudo pela metade só para não deixar na mão aquele pobre herói destemido que provavelmente estará de cueca à beira da milésima morte causada pela busca incessante por sua noiva raptada? Reconheceu, caro amigo retroaventureiro? Se sim, bem vindo ao mundo de Ghouls’n Ghosts.
Um dia, em meados da metade da década de 80, a Capcom resolveu portar para o Nintendinho aquele joguete de ação plataforma arcade onde devíamos levar um tal de Sir Arthur e sua samba canção até os confins do submundo das trevas duas vezes seguidas, e desde então, eu me estrepo sem dó nem piedade toda vez que tento realizar essa missão suicida, coisa que se repete a mais de duas décadas. Caro amigo retroaventureiro, eu simplesmente nunca consegui chegar na metade de Ghosts ‘n Goblins, e quando digo metade, eu me refiro ao meio do mapa da primeira jogada, ou seja, eu nunca consegui realizar a proeza de chegar a 1/4 do jogo inteiro.
Não é à toa que eu não consigo, e eu estou longe de ser o único: a história simplória da princesa que é raptada por um demônio em uma noite romântica no cemitério do reino serviu de premissa para a criação de um dos mais irritantes e viciantes mundos que já foram vistos em um jogo eletrônico. Motivo: controlamos um cavaleiro que pula tão bem quanto uma pedra e que a seu favor, só tem uma coleção de objetos pontiagudos (ou não) para atirar em milhares de criaturas sobrenaturais que não medem esforços para nos tirar do sério e que vivem em um mundo simplesmente projetado para nos matar a cada passo realizado. Some a isso o fato de que, fora a dificuldade extrema da aventura, ainda era necessário terminá-la duas vezes seguidas para se ver o final do jogo, e a razão para o sofrimento se torna óbvia.
Mas por que então será que tanta gente insistiu (e ainda insiste) em jogar essa desgraça de jogo? Simples: matar zumbis, espantar fantasmas, e chutar a bunda vermelha de demônios alados não era algo que se via todo dia em um jogo de videogame, e posso lhe assegurar que a vontade de avançar por entre aquelas etapas dificílimas e descobrir seja lá o que for que viesse pela frente, era o que alimentava a perseverança do jogador de Ghosts ‘n Goblins, era o que separava os homens dos meninos. Foi assim que Arthur se tornou um dos personagens mais queridos e importantes da indústria gamística de todos os tempos: mostrando como é que deveria ser um jogo difícil de verdade, regra que a Capcom manteve intacta no segundo game da franquia que chegava aos arcades em 1988, Ghouls’n Ghosts, e que foi portada no ano seguinte para uma multidão de consoles da época, dentre eles, o Mega Drive.
É bem verdade que o port não foi o melhor nem o mais fiel a ser lançado, as versões de X68000 (pra variar) e Pc Engine se mostravam muito mais fiéis ao original em detalhes gráficos e trilha sonora do que a do Megão, mas engana-se aquele que acha que o game não fez bonito no console da Sega: além de ser disparado a conversão mais famosa do game, Ghouls ‘n Ghosts estampou capas de revistas no mundo todo e figurou em tudo que era lugar como um dos melhores jogos da época. Virou até poster que vinha de brinde em revista nacional! Verdade é que em 1989, o Mega Drive ainda engatinhava graficamente, e apesar da visível superioridade do arcade e de outros ports menos conhecidos, o que se via na tela da TV ao se ligar o aparelho negro era algo que parecia estar no limite até então conhecido do console, um game de gráficos surpreendentes quando comparados ao que existia até então no popular sistema.
Mas se você, caros amigo retroaventureiro, pensa que eu terminei este jogo na época, estão muito enganados: eu joguei um pouco e desisti, fui vencido pela impressão devastadora que o game anterior para NES havia deixado em mim. Parei de jogar antes mesmo de sentir a real dificuldade daquela nova aventura, e isso foi um erro que eu só fui reparar agora, a poucos meses atrás: joguei, e finalmente consegui terminar um game dessa franquia diabólica, e com final verdadeiro! Foi difícil? Foi, demais, e nem imagino como teria sido tentar isso na versão Arcade e eu logo mais eu explico o por quê. O importante agora é dizer que eu só não relatei minhas experiências com este jogo antes por que eu planejava fazer um paralelo dele com a versão de SNES, Super Ghouls ‘n Ghosts, mas quando percebi que se tratavam de dois jogos que de iguais só tinham a premissa, eu desisti da ideia para no futuro, falar exclusivamente de cada um deles.
Ghouls ‘n Ghosts é continuação direta de Ghosts ‘n Goblins, e sua história acontece 3 anos após os eventos deste primeiro game: o capiroto resolve reclamar o lugar de chefão do inferno que estava vago desde que o demônio Astaroth fora derrotado por Arthur, e começa a aterrorizar as vilas capturando almas humanas para seus feitos demoníacos. Arthur entra então em ação para detonar o novo vilão e restaurar as almas roubadas, dentre elas, a de sua amada princesa Prim Prim, que jaz semi-morta à espera de que o cavaleiro tenha sucesso em sua missão. O que se vê então é quase o de sempre: hordas de criaturas sombrias no encalço do cavaleiro, chefes de fase enormes e bizarros, muita dificuldade, a velha necessidade de se terminar o game duas vezes, e alguns elementos inéditos adicionados à aventura para dar aquele ar de novidade, principalmente em se tratando de jogabilidade.
Comparado ao primeiro jogo, logo percebemos que toda a movimentação é mais fluída e rápida, e de cara notamos que Arthur agora pode atirar para cima, o que é muito útil contra aquele monte de criaturas aladas que aparecem sem aviso, e também para baixo quando está no meio de um pulo, movimento que em contrapartida quase não usamos, mas está lá! O leque de apetrechos que o cavaleiro pode usar contra a monstraiada também é bem mais generoso, e uma nova armadura faz as vezes do item especial do jogo. É quase como pegar duas delas em sequência: pegamos uma e adeus samba canção, então se conseguirmos chegar “vestidos” até o ponto onde pegaríamos outra armadura, esta será então dourada, e garantirá ao cavaleiro o poder de desferir golpes carregados, que são diferentes para cada arma do jogo. Essas armas e armaduras podem ser pegas de inimigos detonados ou de baús que aparecem aqui e acolá aos montes durante as 5 fases básicas do jogo, muitos deles brotando do chão quando Arthur pula de certos locais chave. Mas um mago bem desgraçado pode surgir também de dentro deles, e quando isso acontece, ele desfere uma magia que se nos acertar, transforma o cavaleiro em um pato inútil ou em um velho decrépito, situação que dura por alguns segundos ou até a próxima morte, o que é mais provável. Não consigo descrever em palavras como esse mago me tirou do sério… A dada vez que ele aparecia e me transformava eu xingava de ódio como se tivesse morrido, tanto por que era isso que geralmente acontecia em seguida!
E morrer é o acontecimento mais abundante que você vai ver durante o jogo todo! Chegar ao final da quinta fase é para poucos, pois fora a tarefa de virtualmente decorar cada passagem de modo que as inúmeras armadilhas, obstáculos e inimigos traiçoeiros se tornem ultrapassáveis, o aventureiro ainda terá que jogar o game inteirinho novamente (que obviamente estará mais difícil) para garantir acesso à Lucifer’s Chamber, uma sala que só pode ser aberta se Arthur estiver de posse do Psycho Cannon, um poder devastador que aparece nas etapas finais da segunda partida. Jogando agora, eu pude presenciar todo esse processo de aprendizado infernal que é avançar por estas etapas. São relativamente longas, possuem chefes difíceis, e pra variar, Arthur não precisa levar mais de 2 esbarrões para virar aquela famosa pilha de ossos, mas mesmo assim, consegui terminar o jogo em uma tarde apenas!
E vocês devem estar se perguntando agora “Mas que milagre foi esse, tiu Sabat? Que feitiço, código, trapaça, mandinga você utilizou para conseguir realizar tal feito?”, e eu lhes respondo com a maior simplicidade: nenhum, nada, necas! Sim, o game é dificílimo, daqueles que fazem a pessoa desistir de terminá-lo por cansaço mesmo de tanto morrer, mas um fator crucial para a dificuldade o diferencia de sua contraparte arcade: o original é movido a fichas, as versões caseiras não! Salvo as diferenças gráficas e sonoras, Ghouls ‘n Ghosts no Mega é praticamente idêntico ao original, todos os inimigos estão nos mesmos locais, os chefes são vencidos dos mesmos jeitos, as armadilhas são as mesmas e te ferram da mesma maneira, só que na versão de Mega, a gente morre e aperta o CONTINUE, que são infinitos e nos permitem recomeçar do último Check Point alcançado, enquanto no arcade nós tínhamos que desembolsar a mesada do mês inteirinha em fichas se quiséssemos progredir. Assim o jogador perseverante vai morrer centenas de vezes, mas vai avançar cada vez mais e uma hora, seja em uma tarde ou em uma semana, vai terminar o jogo.
Ghouls ‘n Ghosts chegou ao Mega naquela época de ouro em que o console não cansava de receber ports de jogos de arcade que faziam a alegria daquela garotada que só podia ir até um fliperama se fosse escondido (por que de acordo com os pais, fliperama era coisa de “maloqueiro”), e durante um bom tempo, foi um dos games mais procurados do console nas locadoras e afins. O game hoje pode ser taxado de mediano se for comparado aos melhores títulos do console, mas pensar desta maneira seria cometer uma grande injustiça para com um título que foi considerado tão espetacular no ano de seu lançamento, e que merece ser jogado nem que seja para que o amigo retroaventureiro veja qual era o tipo de jogo que causava insônia, frustração e vício na gurizada daquela época. Como eu já disse anteriormente, salvar a princesa Prim Prim foi, é, e sempre será uma tarefa para poucos corajosos, e a estes nobres aventureiros, Sir Arthur agradece.
O slogan do antigo RetroPlayers ainda vale pra mim: “também to morto mas tô aí!”
E muito bem acompanhado =)